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Mulheres invisíveis na historiografia oficial de Brasília


Brasília tem uma dívida histórica com suas mulheres, particularmente com as que participaram da fase inicial de construção da cidade e de quem pouco se fala. As pioneiras de Brasília foram envoltas num véu de invisibilidade perante a história oficial, criando-se a falsa impressão de que elas não estavam aqui, lado a lado com os homens, lutando e se sacrificando pela construção da capital do país.

Fonte das fotos: Novacap


O foco principal dos estudos sobre o início de Brasília, de maneira geral, apontam para os aspectos políticos e históricos da transferência da capital do Brasil para o centro do país, propaganda de convencimento da importância da nova capital, questões arquitetônicas e de planejamento urbano, crítica da utopia da cidade modernista, história da atuação dos homens trabalhadores (candangos), estudos sobre os acampamentos pioneiros, formação das cidades ao redor de Brasília e outros temas afins, que majoritariamente fazem referências enaltecedoras aos grandes nomes do início de Brasília, em geral, todos homens: Presidente Juscelino Kubitschek (JK), Israel Pinheiro, Oscar Niemeyer, Lucio Costa, Bernardo Sayão, Burle Marx, Ernesto Silva, Darcy Ribeiro, dentre outros.


A história de Brasília é marcada por referências enaltecedoras ao papel dos protagonistas históricos do sexo masculino. A historiografia excludente, construída ao longo do tempo, quer nos fazer crer que, num universo de quase 60 mil trabalhadores, não existiam mulheres. Como se fosse plausível idealizar e construir a nova capital do país, no meio do nada e a 1.200 km do litoral, sem a participação feminina. Eventualmente as poucas mulheres lembradas são D. Sarah e D. Júlia (esposa e mãe do presidente JK) ou alguma esposa de outro político importante.


Segundo a coordenadora do Instituto de Pesquisa Aplicada da Mulher (Ipam), Tânia Fontenele, a grande maioria das mulheres vieram para Brasília acompanhar os maridos. “As condições eram precárias. A cidade estava sendo construída e não tinha urbanismo, então os acampamentos eram de madeira, muitos moradores não tinham acesso a água e luz”, explica.

Fonte das fotos: Novacap e Metrópoles

“No início de Brasília, eram poucas mulheres, mas a gente valia por mil. A gente fazia de tudo. Era um desafio viver sem água e luz, numa cidade toda em construção. Valeu a pena tanto sacrifício para ver nascer a nova capital do Brasil. Pena que a gente não é lembrada...”. Maria Luíza Mendes, cozinheira, chegou em 1958 em Brasília.” (FONTENELE, 2017)

Vindas do interior ou de grandes capitais do Brasil, as pioneiras desempenharam funções fundamentais para a formação da cidade: lavadeiras, professoras, cozinheira, prostituta, engenheiras, parteiras, dentre outras profissões, que trabalharam e moraram em condições precárias. Sacrificaram-se no meio da poeira das construções para a consolidação de Brasília, e, no entanto, nunca foram lembradas. Dentre as pioneiras de Brasília, cito:


Neusa França, pianista que escreveu o hino oficial da cidade. Artista consagrada, compositora e professora, integrante do primeiro grupo de mestres do Caseb. Vinda do Rio de Janeiro, já com carreira internacional consolidada, ela se mudou para Brasília no início de 1960, antes da inauguração, tornando-se a primeira pianista da nova capital e responsável pela formação da primeira e de muitas outras gerações de músicos da cidade. Seu trabalho para a constituição do universo musical da cidade, sobretudo no campo erudito, é imensurável.



Mercedes Parada, desenhista que veio do interior de Goiás acompanhar o marido, o engenheiro Joffre Parada. Ela participou diretamente na elaboração dos mapas de Brasília, mas, nos registros, foi esquecida, uma injustiça histórica.




Foto: Metrópoles

Foto: Metrópoles

Em 2009, com a proximidade da celebração dos 50 anos da inauguração de Brasília, percebendo que seria a oportunidade de rever a historiografia oficial, propondo questionar a ausência de narrativas sobre a participação das mulheres na história da nova capital do Brasil, surgiu o projeto “Mulheres Invisíveis da construção de Brasília”, com o intuito de entrevistar 50 mulheres que chegaram nos primórdios da cidade, entre 1956 e 1960, recuperando suas memórias enquanto estivessem vivas. Foram selecionadas mulheres de diversas profissões, de classes sociais e vindas de várias regiões do Brasil. Priorizaram aquelas que nunca tiveram a oportunidade de contar suas vivências da cidade que viu ser construída. Viram a urgência de realizar a pesquisa, uma vez que essas mulheres pioneiras estavam com idade avançada e o risco de perder as “memórias orais femininas” era eminente. Iniciaram a pesquisa, registrando os depoimentos para a realização do documentário denominado Poeira e Batom no Planalto Central – 50 mulheres na construção de Brasília.



Complementando a pesquisa, foi montado um livro com imagens raras do início de Brasília permeando os testemunhos das mulheres pioneiras e a montagem. Para o lançamento do documentário foi montado no Museu da República de Brasília, uma exposição fotográfica e de objetos da década de 60 pertencentes das famílias pioneiras. Denominou-se essa exposição de Memórias Femininas da construção de Brasília, na qual foi possível fazer a reconstrução representativa dos espaços vivenciados durante a construção de Brasília, representados pela casa (residências provisórias nos acampamentos), local do trabalho e lazer das mulheres (banhos de cachoeira, serenatas, passeios à cavalo ou de Jeep pelas trilhas do cerrado). Nessa exposição, realizaram uma memorabilia do feminino da construção de Brasília, apresentando objetos, música de época, mobiliário e vestuário da década de 60, proporcionando aos visitantes uma “entrada no túnel do tempo” da construção da nova capital, no centro do país.


Cabe mencionar que, no Brasil, da época da inauguração de Brasília, as conquistas sociais e trabalhistas para as mulheres ainda eram muito limitadas. Prevalecia as representações sociais tradicionais – mãe, família, dona de casa exemplar – permanecendo atreladas, na sua grande maioria, ao espaço privado – ao doméstico. Porém, a construção de Brasília representou para muitas mulheres quebra de paradigmas, fato constatado em pesquisa realizada sobre as Memórias Femininas da construção de Brasília por Tânia Fontenele (2010,2013). Nessas pesquisas, são evidenciados, o quanto as mulheres contribuíram efetivamente para o processo de formação da cidade, contrapondo o silêncio das fontes oficiais, que nunca mencionavam a participação feminina, dando a impressão de que não havia mulheres na fase inicial da cidade (1956-1960).


Nos relatos, as mulheres pioneiras afirmam que romperam com muitos preconceitos aceitando o desafio de vir para Brasília, toda em construção:


“Brasília era símbolo do novo, aqui não se tinha o controle que nós mulheres estávamos acostumadas nas outras cidades. O comportamento social no Brasil naquela época era completamente conservador e machista. Na verdade, não se percebia socialmente o quanto as mulheres eram subjugadas e silenciadas sobre sua importância social. Brasília foi construída com o conceito do moderno e com inovadoras concepções educacionais e de gênero, ninguém se conhecia, mas todo mundo se unificava naquele novo e gerava novos padrões de comportamento, conforme afirma Iara Pietricovsky.” (FONTENELE, 2017)

A seleção por concurso de professoras, em todo o país, criou oportunidades para muitas mulheres saírem de suas pequenas cidades e terem a grande chance de conquistarem sua independência econômica e social. Os salários eram compensadores e muito maiores do que nos outros estados brasileiros, proporcionando empoderamento e autonomia para as mulheres que aceitavam o desafio de morar numa cidade no “meio do nada”, rompendo os preceitos de que “lugar de mulher é em casa”. Segundo os relatos, os jovens casais que aqui chegavam tinham que encontrar meios de criar seus filhos sem rede de apoio de avós, tios e outros familiares. A relação entre os casais precisava ser de ajuda mútua para sobreviverem no cenário de precariedade enfrentada nos acampamentos de madeira, onde muitas vezes faltava água e luz, mantimentos e outros confortos a que estavam habituadas em suas cidades de origem.


Não se ignora o contexto sociocultural do período de construção da cidade, em que o mundo masculino predominava e regia a ordem social, por conseguinte, a história da cidade foi narrada sob a ótima masculina que omitiu a participação feminina. Contudo, no tempo atual, quando as conquistas femininas trouxeram o reconhecimento do protagonismo das mulheres na história universal, é inconcebível manter a anomalia na historiografia de uma cidade que se pretende moderna e revolucionária.


Reconhecer a participação das mulheres no processo da construção de Brasília é relevante para evidenciar o quanto a história oficial da nova capital do Brasil precisa ser revisada, gerando uma reorganização de suas representações. As pioneiras de Brasília estavam muito à frente de seu tempo e foram essenciais no processo de construção da nova capital da República. Foram desprendidas ao aceitarem o desafio de vir para uma cidade que ainda estava sendo construída. O apoio delas aos trabalhadores foi fundamental para que sobrevivessem em um local em condições precárias. Escrever a história incluindo as mulheres é sair do silêncio de onde por muito tempo estiveram confinadas, fazendo romper o apagamento de sua atuação na memória social.



Fonte das fotos: Novacap e Metrópoles

Para saber mais:

Documentário “Poeira e Batom no Planalto Central”


Censo no DF em 1959


Matérias:

As histórias esquecidas de três mulheres que mudaram o destino da capital do país


Candangas: mulheres que inventaram Brasília, que foi inventada por homens




Referências:

Na construção desse texto, fez-se uso de transcrições, de simplificações e de generalizações dos textos originais.


Este texto foi integralmente produzido a partir da transcrição de trechos das seguintes fontes bibliográficas:


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