No âmbito da saúde, não realizar um recorte de gênero para qualquer questão apresentada é minimamente insensato, afinal, há diferenças gritantes nas realidades de homens e mulheres.
Não se trata apenas de diferenciar as pessoas pelo seu sexo biológico, quando fazemos um recorte de gênero, falamos de como esta diferença se traduz na realidade a partir de noções de desigualdades profundamente enraizadas. Isto também vale para a saúde mental.
"Trabalhar a saúde mental das mulheres sob o enfoque de gênero, nasce da compreensão de que as mulheres sofrem duplamente com as consequências dos transtornos mentais, dadas as condições sociais, culturais e econômicas em que vivem. Tais condições que são reforçadas pela desigualdade de gênero, bem ressaltada na sociedade brasileira, que atribui à mulher uma postura de subalternidade em relação aos homens."
"Outra questão importante em relação à leitura do campo da saúde mental sob o viés de gênero diz acerca do olhar do clínico que avalia o paciente. Nossos "olhares" são marcados pelos valores de gênero, os quais se tornam fator determinante na atividade hermenêutica da leitura dos sintomas. Tendemos a julgar e avaliar a partir de certos padrões ideais, inscritos e constituídos culturalmente." (Zanello e Silva, 2012)
A saúde mental da mulher brasileira está sob constante risco, diante das pressões sociais e estéticas a que ela é submetida diariamente. Os transtornos psicológicos que as mulheres desenvolvem com mais frequência são a depressão, a ansiedade, compulsão por comer, anorexia e bulimia.
O desempenho concomitante de diferentes funções é uma das características marcantes da mulher contemporânea. Mãe, esposa, profissional, cidadã, mulher; inúmeros são os papéis assumidos pelo público feminino desde a sua emancipação. Não obstante, a pressão imprimida pela indústria da “beleza”, para o alcance de padrões estéticos cada vez mais distantes da realidade, atua como fator adjunto à sobrecarga emocional.
Muito mais que cansaço e estresse, a múltipla jornada pode desencadear sérios problemas à saúde mental feminina.
A OMS alertou sobre os impactos de determinantes sociais na saúde feminina tais como desigualdade de gênero, o machismo brasileiro, a violência doméstica e sexual, e tantas outras violências que agravam este adoecimento psíquico feminino.
De acordo com uma pesquisa feita por Daniel Freeman, psicólogo da Universidade de Oxford, no Reino Unido, as mulheres têm 40% mais chances do que os homens de sofrer algum transtorno mental.
A pesquisa de Oxford também concluiu que as mulheres têm 75% mais chances de ter sofrido depressão em um período recente do que os homens, e 60% maior para ansiedade.
De acordo com a psicóloga Suenne Valadares, os transtornos mentais podem ser provocados por diversos fatores, entre eles os socioculturais. “A ideia de uma mulher puxa a ideia de alguém cuidadora, que puxa a ideia de uma mãe e se funde com uma idealização, quase de uma nossa senhora. Todos os imperativos que a gente tem em relação ao corpo, de ter que ser magra, malhada, e se vestir de determinada forma... Isso termina repercutindo nos tipos de adoecimento”.
Na maioria das vezes, cabem às mulheres o cuidado dos doentes da família, dos idosos e, principalmente, das crianças. Os trabalhos doméstico e profissional acabam gerando fadiga e exaustão.
Algo que também pode fazer as mulheres adoecerem psicologicamente de alguns transtornos com maior frequência é a auto cobrança feminina, para dar conta de tudo o que a sociedade espera de uma mulher.
“Considerando a realidade de múltiplas funções que a mulher exerce, não tem como dar conta de tudo, não dá para ser Mulher Maravilha. E muitas mulheres tentam, de fato, dar conta de tudo. Mas nenhuma idealização vai poder dar conta da vida real”. (Suenne Valadares)
Para o pesquisador Daniel Freeman, a impossibilidade de dar conta de tudo leva a uma baixa autoestima.
“As mulheres tendem a se ver mais negativamente do que os homens, e isso é um fator de vulnerabilidade para muitos problemas de saúde mental”
Outra questão central para o adoecimento é o nível de violência a que as mulheres têm sido submetidas no seu dia-a-dia. Os números de casos de violência física, assédio sexual e feminicídio confirmam essa triste realidade.
Os dados sobre a violência contra a mulher são assustadores. Segundo o Ministério da Saúde, a cada quatro minutos, uma mulher é agredida por um homem no Brasil. Vale lembrar que esse dado é referente ao número de vítimas que denunciam o crime. Há, ainda, uma grande quantidade de mulheres que, por medo ou vergonha, sofrem violência e não contam a ninguém.
A violência contra a mulher põe em grande risco a saúde mental das vítimas. Isso acontece por diversos motivos. Além da agressão psicológica, que diminui a sua autoestima, a mulher que é privada de relações saudáveis sofre. A violência também pode causar na vítima o sentimento de culpa ou vergonha.
Segundo Valeska Zanello, doutora em psicologia e especialista em saúde mental e gênero da Universidade de Brasília - UnB, a medicina ainda falha em buscar as verdadeiras causas do sofrimento feminino e aposta em justificativas simples, apenas biológicas. A explicação padrão é a de que, por sofrerem mais com variações hormonais, como menopausa e gravidez, as mulheres acabariam mais suscetíveis a episódios depressivos.
“Culpam-se os hormônios e ignoram-se várias agressões, como estupro e violência doméstica, que não são vistas como geradoras de sofrimento. Ao ouvir a vida dessas mulheres, os psiquiatras não perguntam e não levam em conta o horror vivido por elas”. (Dra Valeska Zanello)
No Brasil, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher - PNAISM foi elaborada em 2004, a partir de diagnóstico epidemiológico da situação da saúde da mulher e do reconhecimento da importância de se contar com diretrizes que orientassem as políticas de Saúde da Mulher. Segundo a Política:
“[…] as mulheres ganham menos, estão concentradas em profissões mais desvalorizadas, têm menor acesso aos espaços de decisão no mundo político e econômico, sofrem mais violência (doméstica, física, sexual e emocional), vivem dupla e tripla jornada de trabalho e são as mais penalizadas com o sucateamento de serviços e políticas sociais, dentre outros problemas. Outros aspectos agravam a situação de desigualdade das mulheres na sociedade: classe social, raça, etnia, idade e orientação sexual, situações que limitam o desenvolvimento e comprometem a saúde mental de milhões de mulheres.”
Na conjuntura atual, com a perda de direitos sociais, as mulheres encontram-se ainda mais vulneráveis, necessitando de políticas públicas eficientes para o pleno exercício de seus diversos papéis na sociedade. A Emenda Constitucional 95, que congela os gastos sociais do governo, já está afetando as políticas de Atenção Básica e de Saúde Mental, atingindo mais intensamente o público feminino.
Para a Organização Mundial de Saúde (OMS) - que afirma que a saúde mental feminina é afetada por seu contexto de vida e por fatores externos socioculturais, econômicos, de infraestrutura ou ambientais - a transformação desses fatores seria o ideal para uma prevenção primária dos adoecimento psicológicos das mulheres.
Para pensar em uma mudança nesse cenário, além das ações em saúde pública específicas para mulheres, principalmente para aquelas mais vulneráveis, é fundamental centrar na educação de garotos e garotas sobre como as questões de gênero recaem pesadamente sobre a vida das mulheres.
Referências:
Sites:
ZANELLO, Valeska; SILVA, René Marc Costa e. Saúde mental, gênero e violência estrutural. Revista Bioética, Brasília, v. 20, n. 2, p. 267-279, 2012. Disponível em: <http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/745>. Acesso em: 02 abr. 2021.
Senicato, Caroline, Azevedo, Renata Cruz Soares de e Barros, Marilisa Berti de AzevedoTranstorno mental comum em mulheres adultas: identificando os segmentos mais vulneráveis. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2018, v. 23, n. 8 [Acessado 3 Abril 2021] , pp. 2543-2554. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1413-81232018238.13652016>.
Realmente, só lendo , para entender tantos aspectos e fatores abordados sobre a mulher , sua saúde fisica e mental, suas lutas constantes e nem sempre compreendidas ... Aguardo o próximo artigo em breve! 👏👏👏
Como eu aprendo por aqui.... sempre grata. Continuemos juntas nessa jornada por um mundo mais igual para as mulheres.