Camilla de Magalhães Gomes escreveu o artigo intitulado “Gênero como categoria de análise decolonial”. O seu artigo é estruturado na perspectiva decolonial de gênero que o gênero pode ser uma forma de colonialidade e pode produzir discursos que escondem a multiplicidade da vivência das relações fora sistema-mundo da colonial modernidade. A proposta é interessantíssima e justamente por isso resolvi recortar trechos do artigo dela para tentar montar um texto mais compreensível para o senso comum. O título que escolhi traduz a ideia nuclear de uma forma mais simplificada.
A articulação de gênero e raça no artigo da Camilla decorre do fato de que essas duas categorias são estruturantes das relações de poder hierarquizadas, fruto do pensamento colonial. Mas, antes de desenvolver a ideia em si, convém esclarecer os termos que formatam a ideia.
Gênero e raça constituem linguagens que dão significados ao humano, aos corpos. Linguagens da modernidade binária que categoriza o outro, assentadas na dicotomia humano/não humano.
Por que a palavra gênero e não sexo? O uso da categoria gênero no lugar da categoria sexo visa rejeitar a imposição por um determinismo biológico sobre o que seria “ser mulher” e “ser homem”. Gênero, por constituir uma linguagem ou um conjunto de significados, é uma construção social. Ao usar gênero em associação ao seu caráter social, a intenção é de problematizar a posição da mulher em sociedade ou problematizar o “ser mulher”. O uso dessa categoria implica que homem e mulher são conceitos social, corporal e historicamente inscritos tal qual “gênero”. Assim, usar o gênero como categoria de análise é compreender que ele funciona como um desestabilizador de conceitos como mulher, homem, sexo e mesmo corpo.
O que hoje entendemos ou usamos como sexo/gênero foi construído no performativo da colonialidade, tendo a raça e o racismo como informadores dessa construção. A raça e a criação da raça como produto da colonialidade europeia na América Latina é fundamental para compreender a binaridade hierarquizada do sistema então criado e que nos organizou dali até hoje. Não vivemos um momento pós experiência do colonialismo, a colonialidade é e continua presente na relação entre os países, entre países e sujeitos e entre os sujeitos, colonialidade que é de poder, saber, ser, natureza e linguagem, sendo também constitutiva dessas.
É nesse contexto que passa a ser realizada uma análise feminista da colonialidade – ou um feminismo decolonial – para pensar como as normas de gênero fazem parte da colonialidade do poder, do saber e do ser. Passa-se a falar também da colonialidade do gênero, passa-se a pensar que tanto o gênero é informado pela raça, quanto a raça é informada pelo gênero. Daí entender não ser possível falar em gênero sem pensar a colonialidade, nem falar de colonialidade sem incluir o gênero.
Povos originários, povos indígenas, grupos sociais e comunitários colonizados não possuíam (ou ainda não possuem) uma estrutura hierarquizada de gênero como a que se imprimou na colônia pela metrópole. Pesquisas revelam como a cultura desses povos, muitas vezes, possuía e possui uma maior transitoriedade das posições de gênero, uma relativa igualdade, uma divisão de tarefas que não se assemelha ao que se convencionou chamar divisão sexual do trabalho, um respeito pela homossexualidade, identidades de gênero mais fluidas e não decorrentes do sexo e mesmo diversas do duplo homem-mulher.
Obra da série Geometria Brasileira, de Rosana Paulino (Foto: Reprodução/ Isabella Matheus)
Povos que possuíam outro fazer do gênero tem suas redes de relações que funcionam de modo dual ou múltiplo esgarçadas pela violência colonizadora. A normatividade rígida de gênero, centrada na reprodução e na domesticidade e feita como ideal civilizatório contra os males de uma relacionalidade “desviante” em termos de gênero e sexualidade, faz parte do arsenal racista da colonialidade e, uma vez imposta como ideal e parâmetro de relações, modifica as conformações de relacionalidade dos colonizados, reforçando estruturas e hierarquias de gênero que tinham outras dinâmicas.
Identificar essas outras formas do fazer gênero nos faz perceber que as tais novas percepções de gênero que o discurso feminista e/ou queer quer entregar não são tão novas (e talvez aprenderíamos mais estudando esses outros fazeres).
Uma análise decolonial pressupõe que se pense como raça (e classe) e gênero (re)produzem-se reciprocamente nessa construção moderna binária. Mais do que falar de interseccionalidade de raça, classe e gênero, de analisar como essas categorias de opressão funcionam criando experiências diferentes, trata-se de analisar como essas categorias juntas são ao mesmo tempo causa e efeito d(n)a criação dos conceitos umas das outras. Isso significa dizer que a forma como compreendemos o gênero depende de como compreendemos a raça e a classe, e o contrário igualmente. Passa por pensar como categorias de branquitude e negritude, masculinidade e feminilidade, trabalho e classe passaram a existir historicamente desde o início.
Organizado em torno da produção do “outro” como inferior, o pensamento colonial, euro e antropocentrado funciona mediante as relações hierarquizadas que cria e esconde essa criação com atribuições de natureza ou essência, funcionando em sua dicotomia principal: a de humanos e não-humanos. A desumanização constitutiva da colonialidade do ser, processo que não é apenas uma classificação de povos em termos de poder e gênero, mas também o processo de redução ativa das pessoas, a desumanização que as torna aptas para a classificação, o processo de sujeitificação e a investida de tornar o/a colonizado/a menos que seres humanos. Ambas categorias, gênero e raça, formam a hierarquização binária moderna que atribui (ou não) humanidade aos sujeitos e constitui um outro menos ou não-humano, categorizável, excluível, explorável; especialmente quando esses marcadores ou categorias são transformados em discursos científico-biológicos, utilizados para instaurar e manter ao mesmo tempo essa hierarquização.
Desfazer as formas de saber e poder que esse sistema-mundo nos entregou é fundamental para um pensamento que se pretenda expansivo. Para pensar os significados do “humano” é necessário analisar o gênero dentro da perspectiva decolonial que reconhece a raça como uma das principais categorias definidoras e hierarquizantes do humano. Pensar o gênero como performatividade e relacionalidade compreende perceber a multiplicidade do fazer gênero fora do mundo ocidental-moderno.
Usamos o gênero como forma de significação de poder. Mas, numa perspectiva decolonial, é preciso dizer que essa operação é resultado do colonialismo e é parte da colonialidade que nos fica como legado. Nessa articulação raça-sexo-gênero, mulheres e homens negros e indígenas são comumente identificados não só como corpos, mas como corpos hipersexualizados. No marco da colonialidade do gênero, há mais do que um estereótipo, mas um processo em que se nega a determinados corpos o componente construído, cultural, racional, relacional. São ape
nas corpos, dotados não de gênero, desejo e sexualidade, mas de sexo, instinto, impulso.
Noções de feminilidade e masculinidade, por exemplo, são produzidas de modo racializado. O imaginário de mulheres brancas – como os de fragilidade, domesticidade, maternidade, por exemplo – é produzido em oposição a imaginários sobres homens e mulheres negras e indígenas pela negação do gênero a estes últimos, o que levará no sentido de que isso está presente na ideia do “gênero feminino” como ideal branco oposto ao de mulheres negras e indígenas como possuidoras apenas de sexo e, assim, como aquilo que “não se quer ser”; também no sentido de que esse ideal é construído junto a composição de um “gênero masculino” que, negado aos homens negros e indígenas, identifica-os como hipersexualizados, agressivos, perigosos, predadores. A ideia de uma mulher branca pura, frágil e vulnerável, sem uma contraposição racializada, implodiria o próprio ideal de uma matriz heteronormativa. Afinal, se frágil em oposição ao homem, o homem branco é um predador ou ameaça a essa mulher desprotegida.
A formulação de sentidos do gênero na colonialidade guarda esse externo destituído de gênero: o homem negro que ameaça a mulher branca e justifica a caracterização protetora do homem branco. O imaginário sobre a masculinidade negra revela essa atribuição de sexo sem gênero, de corpo sem mente, de desejo sem controle na atribuição de uma sexualidade violenta e criminosa e que faz deles também vítimas de violência física e sexual. Como “sujeitos sem gênero”, assim como as mulheres negras, não são vistos como vítimas, mas mais ainda, só são percebidos como agressores. Ao (hiper)sexualizar mulheres e homens negros, negando-lhe o gênero, estes passam a ser percebidos como apenas corpos destituídos de subjetividade, operação que se torna fundamental para que o genocídio negro – e toda violência que o compõe – não seja computado como tal: o eliminado não é vítima, não é humano.
A grande dicotomia da colonial modernidade é a entre humanos-não humanos. Dicotomia essa que não se resume a diferenciar humanos de outros seres vivos, mas que molda critérios de definição de humanidade que criam “menos humanos”, “humanos inferiores”, “não humanos”. Usar o gênero como categoria de análise decolonial é uma forma de investigar o que a colonialidade do gênero apagou, destruiu ou invisibilizou e como as noções de gênero da modernidade colonial que hoje discutimos ou combatemos são construções que usam da raça e do sexo de modo articulado para preencher a oposição entre humanos e não-humanos.
O que hoje entendemos ou usamos como sexo/gênero foi construído no performativo da colonialidade, tendo a raça e o racismo como informadores dessa construção, ou seja, raça, sexo e gênero não surgem como conceitos separados, mas são forjados numa mesma matriz que tem como estrutura binária central aquela de humanos/não-humanos. E isso significará pensar que se há um “ideal” do gênero, como aponta a teoria da performatividade, esse ideal não é apenas um ideal heteronormativo, mas também um ideal branco.
Homens e mulheres escravizados e/ou colonizados não são reconhecidos como homens e mulheres na dimensão de gênero, mas apenas na medida em que essa distinção se faz relevante, seja para fins reprodutivos, seja para fins de justificar o acesso do homem branco aos corpos de mulheres negras e indígenas. Não se trata apenas de uma nota de um momento histórico, mas de uma construção de significados.
A criação de uma matriz normativa de gênero, entendida como uma forma de negar humanização a determinados corpos é um produto da colonialidade e tem, em si, um componente racial: a criação da norma do gênero como domesticidade e reprodução como ideal de “cultura”, “civilidade”, “racionalidade”, que coloca a branquitude como ideal, que forma um ideal de gênero oposto a práticas, comportamentos, vivências, corpos, experiências “selvagens”, “naturais”, “irracionais”.
Qualquer crítica sobre a artificialidade da atribuição de sexo ou gênero aos corpos, qualquer crítica sobre como noções de gênero são formadas socialmente passa a exigir uma crítica sobre a dimensão racial dessa formação. As imagens, estereótipos, signos, marcas do gênero estão formatadas por uma distinção racial e, mais do que isso, o que entendemos por sexo e gênero é cunhado nessa mesma cadeia histórica de significados que tem a raça como informador, ou seja, são formados no performativo da colonialidade.
Perceber ou questionar esse uso nos revelará que há outros modos de pensar o gênero, ou ainda, há outros modos de pensar o humano que não esse da hierarquização com fundamento na articulação de sexo-gênero-raça sobre corpos que são mais do que essa linguagem diz.
*Este texto foi integralmente produzido a partir do artigo: GOMES, Camilla de Magalhães. Gênero como categoria de análise decolonial. Civitas, Rev. Ciênc. Soc. [online]. 2018, vol.18, n.1, pp.65-82. ISSN 1984-7289. http://dx.doi.org/10.15448/1984-7289.2018.1.28209.
*Na construção desse texto, fez-se uso de transcrições, de simplificações e de generalizações do artigo original.
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