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Foto do escritorGreicy Guimarães

Divisão sexual do trabalho


Este texto é sobre o primeiro capítulo do livro Gênero e Desigualdades – limites da democracia no Brasil, de Flávia Biroli. Flávia Biroli é uma cientista política brasileira. É autora de vários livros sobre democracia, gênero e mídia. É professora de Ciência Política na Universidade de Brasília e especialista em teoria política feminista. Nesse livro, a autora examina temas fundamentais dos direitos das mulheres, do feminismo e da democracia brasileira. A partir de recortes de trechos do livro, estruturei um texto para tratar exclusivamente da divisão sexual do trabalho, uma vez que o capítulo 1 desse livro, apesar de tratar desse assunto, aborda-o de forma mais abrangente, avançando sobre os impactos da divisão sexual do trabalho na participação das mulheres na democracia brasileira.


Divisão sexual do trabalho é falar do que é definido historicamente como trabalho de mulher, competência de mulher, lugar de mulher e nas consequências dessas classificações. As hierarquias de gênero, classe e raça não são explicáveis sem levar em conta essa divisão que produz identidades, vantagens e desvantagens. A divisão sexual do trabalho tem caráter estruturante, não é expressão das escolhas de mulheres e homens, mas constitui estruturas que são ativadas pela responsabilização desigual de umas e outros pelo trabalho doméstico. A divisão sexual do trabalho não incide igualmente sobre todas as mulheres, é produtora de gênero, ainda que não seja isoladamente. Ela compõe as dinâmicas que dão forma à dualidade feminino-masculino, ao mesmo tempo que posiciona as mulheres diferente e desigualmente segundo raça e classe, ou seja, se dá de forma racializada e atende uma dinâmica de classe. A divisão sexual do trabalho permeia as relações sociais e é fundamental na sua organização. Sua problematização permite questionar categorias e métodos que aprendemos a considerar neutros.


As restrições impostas por gênero, raça e classe social conforma escolhas, impõem desigualmente responsabilidades e incitam a determinadas ocupações, ao mesmo tempo que bloqueiam ou dificultam o acesso a outras. A atribuição de diferenças categorias por meio de referências a supostas certezas biológicas romantiza papéis, como no caso da ideologia maternalista – as mulheres cuidariam mais das crianças porque possuiriam tendências naturais para tal cuidado, e não porque os homens são socialmente liberados dessa função. Está presente também na subalternização característica das ideologias racistas – as mulheres negras realizariam o trabalho remunerado de limpeza porque essa ocupação estaria de acordo com suas habilidades enquanto mulheres negras. No primeiro caso, justifica assimetrias entre mulheres e homens; no segundo, justifica assimetrias entre mulheres tanto quanto entre mulheres e homens.

A distinção entre trabalho remunerado e não remunerado é, assim, um ponto central. O trabalho que as mulheres fornecem sem remuneração, como aquele empregado na criação dos filhos e no cotidiano das atividades domésticas, libera os homens para se engajar no trabalho remunerado. São apenas as mulheres que fornecem esse tipo de trabalho gratuitamente e essa gratuidade se define numa relação: o casamento. É nele que o trabalho gratuito das mulheres pode ser caracterizado como não produtivo. Os produtos que não têm valor quando decorrem do trabalho da mulher em casa passam, no entanto, a ter valor econômico fora de casa, quando atendem às necessidades de outras pessoas que não o marido.


A exploração se daria em dois níveis: um coletivo e um individual. É sobre a apropriação coletiva do trabalho das mulheres que se organizaria a exploração individual, isto é, a apropriação do trabalho de cada mulher pelo próprio marido. Como a isenção do homem é coletiva e institucionalizada, um homem pode exigir como retorno pela sua participação na provisão financeira das crianças a totalidade da força de trabalho de sua mulher. Mas essa exploração não termina no casamento.


Com o divórcio, as mulheres permanecem responsáveis pelas crianças e vivenciam desdobramentos da apropriação do seu trabalho: por um lado, os limites na sua formação e sua profissionalização, derivados das responsabilidades assumidas durante o casamento; por outro, os limites que se impõem pelo fato de permanecerem as principais responsáveis pelas crianças quando termina o casamento. Assim, se as mulheres casadas são as que sofrem diretamente a opressão comum fundada na divisão do trabalho, as restrições sofridas pelas divorciadas e pelas solteiras com filhos expõem o caráter sistêmico e institucionalizado da opressão: elas vivenciam os custos ampliados da ruptura com os padrões de dependência vigentes, sendo essa ruptura voluntária ou não. É justamente o caráter institucional da exploração no casamento que torna potencialmente ruim a situação das mulheres fora dele, a ponto de o casamento parecer como um mal menor.


Trata-se de uma dinâmica que define padrões conjugais, afetivos e ocupacionais e incide na construção dos direitos. A divisão sexual do trabalho doméstico, em seu entrelaçamento com a organização do trabalho assalariado no capitalismo, explicaria, por exemplo, o fato de a jornada de trabalho “normal” ser aquela de indivíduo liberado do trabalho cotidiano doméstico necessário para sua própria manutenção. O acesso diferenciado a tempo livre e renda, diretamente relacionados ao engajamento nas tarefas domésticas, são eixos fundamentais da distância significativa entre homens e mulheres, e mostra que faz sentido pensar a alocação de responsabilidades segundo uma perspectiva de gênero.


O padrão atual de privatização das relações familiares incide desigualmente sobre as mulheres e onera sobretudo aquelas que não têm recursos para contração de serviços no mercado. A responsabilização da família quando o assunto é o cuidado de filhos e idosos e o atendimento as necessidades cotidianas, como a preparação dos alimentos, por exemplo, corresponde predominantemente à responsabilização das mulheres.


A posição de desvantagem das mulheres atualiza-se nos novos padrões de organização do trabalho no capitalismo. A expropriação do trabalho feminino se dá agora de forma mais coletiva do que individual, e a casa, que continua a ser um espaço de opressão, já não seria o principal lugar em que transcorre a vida das mulheres. No patriarcado público, Estado e mercado de trabalho passam a ser dimensões em que as coerções se organizam e se institucionalizam. Novas formas de inclusão são acompanhadas de formas renovadas de opressão e controle.


Por exemplo, no Brasil, a redução de garantias trabalhistas, a aprovação da terceirização irrestrita e de jornadas flexíveis de trabalho tendem a aprofundar as desigualdades já existentes. A permanência da atribuição desigual das responsabilidades pela vida doméstica, sobretudo pela criação dos filhos, seria ainda um fator que tornaria mais aguda a exploração da mão de obra feminina, pelo fato de acarretar a descontinuidade das trajetórias profissionais e provocar maiores conflitos entre as exigências domésticas e o cotidiano de trabalho fora de casa.

Esse é apenas um dos constrangimentos materiais que constitui as escolhas feitas pelas mulheres, mas cabe ressaltar que não são suas “escolhas” que geram esses constrangimentos, mas sim o contrário. As motivações podem não se apresentar para os próprios indivíduos como desdobramentos das estruturas que as configuraram. Justamente por isso motivações e escolhas deveriam ser situadas na dinâmica social em que são produzidas, e não explicadas numa dimensão individual e de uma perspectiva voluntária. Os interesses capitalistas e as formas correntes de exploração do trabalho incidem sobre a vida doméstica, a conjugalidade, a divisão cotidiana das tarefas, a possibilidade mesma de fruição do tempo por mulheres e homens. A alocação de responsabilidades na vida cotidiana, por sua vez, pode coibir ou facilitar a atuação em outras esferas da vida.


A família permanece como nexo na produção do gênero e da opressão das mulheres. Mas a noção de dependência parece ser hoje menos adequada, sobretudo quando se pretende caracterizar por meio dela a relação entre mulheres e homens no casamento. A noção de vulnerabilidade corresponde de forma mais adequada à posição desigual das mulheres hoje. Os arranjos familiares e os padrões da divisão sexual do trabalho modificaram-se, mas continuam implicar maior vulnerabilidade relativa para as mulheres, em especial as mais pobres. Entretanto isso não pressupõe que todas as mulheres são igualmente impactadas por esses arranjos e padrões. A exploração do trabalho e a expropriação do tempo e da energia das mulheres não têm apenas homens na outra ponta das relações cotidianas que as efetivam.


Diferenças codificadas como “naturalmente” femininas ou masculinas, imprimindo às vivências uma concepção dual e binária de gênero, decorrem da atribuição distinta de habilidades, tarefas e alternativas na construção da vida de mulheres e homens. Essas diferenças não se estabelecem da mesma forma para elas e eles, uma vez que presumem normas masculinas e são mobilizadas para justificar as desvantagens econômicas das mulheres. A divisão sexual do trabalho afeta as mulheres de forma coletiva.


A divisão sexual do trabalho produz o gênero, mas essa produção se dá na convergência entre gênero, classe, raça e nacionalidade, para incluir na discussão variáveis implicadas diretamente nas relações de trabalho. As mulheres vivem em um mundo no qual não há apenas sexismo, mas racismo, classismo e outras formas de opressão, portanto em um mundo em que o problema da diferença é na realidade o problema do privilégio. Há um tipo de exploração que se efetiva porque o trabalho doméstico é realizado pelas mulheres, mas isso não significa que seja realizado nas mesmas condições por mulheres brancas e negras, pelas ricas e pelas mais pobres ou por mulheres de diferentes partes do mundo. Ao mesmo tempo, o acesso ao mercado de trabalho também se dá de forma distinta, segundo raça, posição de classe e nacionalidade, se levamos em conta os fluxos migratórios. Na conexão entre divisão sexual do trabalho não remunerado e trabalho remunerado, a vida das mulheres se organiza de maneiras distintas, segundo a posição que elas ocupem em outros eixos nos quais se definem vantagens e desvantagens.


As mulheres não estão sempre em desvantagem, a generalização da posição de algumas mulheres foi denunciada como forma de tornar invisíveis as experiências de outras mulheres e as relações de poder que as diferenciam. Embora tenha sido e continuem sendo os beneficiários da exploração do trabalho doméstico realizado pelas mulheres, os homens também não formam um grupo homogêneo. Assim como a posição das mulheres na divisão sexual do trabalho é desigual, os homens não se beneficiam igualmente do sexismo nem das vantagens que decorrem dessa divisão.


As restrições impostas por gênero, raça e classe social conforma escolhas, impõem desigualmente responsabilidades e incitam a determinadas ocupações, ao mesmo tempo que bloqueiam ou dificultam o acesso a outras. A atribuição de diferenças categoriais por meio de referências a supostas certezas biológicas romantiza papéis, como no caso da ideologia maternalista – as mulheres cuidariam mais das crianças porque possuiriam tendências naturais para tal cuidado, e não porque os homens são socialmente liberados dessa função. Está presente também na subalternização característica das ideologias racistas – as mulheres negras realizariam o trabalho remunerado de limpeza porque essa ocupação estaria de acordo com suas habilidades enquanto mulheres negras. No primeiro caso, justifica assimetrias entre mulheres e homens; no segundo, justifica assimetrias entre mulheres tanto quanto entre mulheres e homens.


Quanto mais a divisão sexual do trabalho doméstico incide como problema e obstáculo na vida das pessoas, mais distantes estão elas do sistema político. Quanto mais envolvidas estão com o trabalho doméstico cotidiano, menores e menos efetivos são os instrumentos de que dispõem para politizar as desvantagens que vivenciam e as hierarquias assim estruturadas. Para quem não realiza trabalho doméstico, pode não ser evidente que este toma tempo e restringe outras formas de atuação na sociedade. Podemos entender que na divisão sexual do trabalho se configura uma forma de “irresponsabilidade dos privilegiados”. Por estarem numa condição vantajosa dada previamente, algumas pessoas podem agir como se não se tratasse de uma vantagem.


*Este texto foi integralmente produzido a partir do capítulo 1 do livro: Biroli, Flávia. Gênero e Desigualdades: os limites da democracia no Brasil. São Paulo, Boitempo, 2018.

*Na construção desse texto, fez-se uso de transcrições, de simplificações e de generalizações do artigo original.


Para saber mais:

Como vimos, segundo Flávia Biroli, "a divisão sexual do trabalho é base fundamental das injustiças e desigualdades de gênero das sociedades contemporâneas". A posição de Flávia é compartilhada por diversas especialistas da área, inclusive na ONU, e comprovada por uma série de levantamentos e estudos recentes.


A ONU faz questão de destacar que nenhum país no mundo atingiu, ainda, a equidade de gêneros – e parte disso se deve a quem faz o quê dentro de casa após o expediente.


A situação por aqui, aliás, não só anda mal, mas vem piorando. Em 2012, 26% das empresas brasileiras não tinham funcionárias em funções de comando. Em 2013, 33% e em 2014, 47%. De acordo com a pesquisa “Women in Business 2015” (Mulheres nos Negócios), da Grant Thornton, hoje esse número escalou para 57%, colocando o Brasil no vergonhoso 3० lugar entre os que menos promovem mulheres no mundo. É importante analisar esses dados sob a luz de uma outra pesquisa, feita recentemente nos EUA. Segundo a “Women in The Wokplace” (Mulheres no Local de Trabalho), da McKinsey, 65% das mulheres com filhos nem sequer desejam ser promovidas a cargos de liderança porque não acham que dariam conta de balancear vida profissional e responsabilidades domésticas. Outros 58%, dentre elas, acha que isso traria estresse demais para suas vidas.

A divisão sexual do trabalho nos parece tão natural porque somos doutrinad@s nela desde muito jovens. Para quem duvida disso, a ONG Plan International realizou um estudo definitivo: o “Por Ser Menina no Brasil”. Cerca de 1/3 das 1.771 meninas entre 6 e 14 anos entrevistadas, ou 31,7%, avalia que o tempo para brincar é insuficiente. Isso acontece porque cerca de 82% delas têm algum tipo de responsabilidade nas tarefas domésticas. Enquanto 81,4% das meninas arrumam sua própria cama, por exemplo, 76,8% lavam louça e 65,6% limpam a casa, apenas 11,6% dos seus irmãos homens arrumam a própria cama, 12,5% lavam a louça e 11,4% limpam a casa. Elas também assumem mais tarefas de risco para crianças, como cozinhar. Entre as meninas 41% o fazem, entre os meninos, 11,4% limpam a casa. Elas também assumem mais tarefas de risco para crianças, como cozinhar. Entre as meninas 41% o fazem, entre os meninos, 11,4%.


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